Análises, Surtos e Etc

Vitrine do meu trabalho.

Wednesday, March 29, 2006

Eu sou o Tudo e o Nada

Chega de tabus. Há certos momentos em que a caveira de manto negro e foice na mão senta no sofá da nossa sala e nos convida para um chá.
Essa semana a senhora das trevas veio de malas e nécessaire passar um tempo na casa dos meus avós.
Por coincidência ou destino (?), vim também pra cá, em visita ao meu avô adoentado.
Ao me deparar com ela, foram desnecessárias apresentações. Eu sabia quem ela era - e que motivo de sua visita era o mesmo da minha.
A princípio me senti angustiada e desconfortável com aquela presença macabra impondo-se para mim.
Considerei-a prepotente, injusta e arrogante. Mas, desviei minha raiva dela e acabei despejando nas pessoas ao meu redor.
Só que a raiva virou ódio quando eu a vi totalmente à vontade, relaxada na cadeira do meu avô, tomando a água de coco dele, como se a casa fosse sua.
E aí, me subiu uma vontade enorme de matar a morte!
Matar a morte?
Com o absurdo de meus próprios pensamentos, decidi me calar, antes que a insanidade se tornasse pública e a família decidisse me internar com uma camisa de força.
Então fiz o que era aceitável: chorei. De medo, de dor, de desespero. De raiva, de tristeza, de dúvida. Chorei de lágrimas, chorei baixinho, chorei escandalosa, chorei no meu cantinho. Mas era preciso agir, pra isso eu estava ali.
Fui ao hospital, visitar o vovô. A danada veio comigo. Ficou em pé, na entrada, incógnita.
Ao fim da visita, fomos à uma pizzaria distrair-nos um poço. A bruxa veio conosco. Fazia caras e caretas para os nossos papos, achei até que ela ia palpitar. Chegava a ser quase amigável, só faltou comer com a gente.
Eis que um celular tocou. Má notícia: Meu avô teve uma arritmia e foi parar na UTI.
Saímos em disparada para o hospital. No carro, ela sentou-se ao meu lado, no banco de trás. Pela primeira vez eu a encarei. Ela também me encarou com aquela cara de Monalisa moribunda.
Chegando lá, enquanto esperávamos por notícias, ela tornou-se o assunto: Alguém sabe onde ele quer ser enterrado? Com qual terno? Enterra-se de sapato? Ela prestava atenção a todos os detalhes da conversa.
Achei aquilo meio mórbido e só não levantei pra quebrar os dentes daquela horripilante por três motivos: 1º porque não sei se ela os têm, 2º para não transparecer minha condição insana (olha a camisa de força!) e 3º porque morro - ops, não morro nada - tenho muito medo daquela foice.
Foi quando o médico veio nos dar o diagnóstico: “o quadro está estável, ele permanecerá na Unidade de Terapia Intensiva sendo monitorado e blá, blá, blá.”
Encarei a esquelética vuduzenta pela segunda vez. Agora olhei pra ela de cima tirando um sarro imaginário: “há-há-há, ainda não foi desta vez”.
Para minha surpresa ela me devolveu um olhar de compaixão. Desde então não vi mais sua foice.
Fomos para casa. A ordem era descansar e aguardar. Rolei na cama de um lado para o outro, mas o barulho daquela secretária do Zé do Caixão mastigando as batatas Pringles do meu avô - ela deve ter dentes – não me deixava dormir.
Consumida por um impulso avassalador, fui até a sala, arranquei as batatinhas de sua mão e gritei:
- Ei, versão sem photoshop da Mortícia Adams, o que é que você quer?
- Qual seu problema, loirinha? – ela retrucou.
Instantes mais tarde, despertei num susto, com aquela mão ossuda me dando tapinhas no rosto e lancei:
- Era isso! Eu morri de medo. Foi a mim que você veio buscar, não é mesmo?
Ao que ela emendou:
- Mas é claro que não. Deixe de bobagens, sua tola. Você apenas levou um susto e desmaiou. Medrosa.
- Mentira, você é fatal e traiçoeira...para onde é que vai me levar? – perguntei, já com medo da resposta.
- Agora sim podemos travar um diálogo – ela disse, com uma voz doce – Com a diferença de que será, na realidade, um monólogo.
Fiz cara de interrogação.
- Explico – a cara de osso foi dizendo – quem quer entender a vida, tem que se envolver com a morte. Não há como evoluir sem me encarar, sem me desafiar. Não há como seguir em frente com pavor de mim. É impossível transcender nutrindo a errônea idéia de que eu sou a cobradora final. A monstruosa senhora do mal.
“Sim, sou inevitável, mas eu não venho buscar ninguém. Sou parte do processo. A tão famosa e única certeza.
O que você não sabe, menina, é que eu não sou uma assombração gótica e muito menos tenho foice.”
- Realmente – fui eu que disse – não tenho mais visto sua foice.
- Esse foi seu primeiro passo na caminhada pela minha aceitação – agora foi ela que falou – Eu sou uma presença, uma energia. O máximo que você pode é perceber-me intuitivamente, sentir minha vibração.
“O resto é ilusão, fantasia, lenda. Alguém um dia, não entendendo nada, disse que é assim e pronto.
No entanto, vocês, que duvidam de tudo, acreditam nessa balela. Você sabe quem foi que me viu assim?
Não e nem por isso você questiona. Segue crendo numa falsa verdade que foi imposta há séculos atrás. Uma caricatura da morte que alguém fantasiou e todo mundo aceita como fato.”
Nesse ponto eu, que já estava íntima da síndica das trevas, resumo:
- Quer dizer, então, que a morte apareceu para mim para me dizer que não é má, nem aterradora, nem se veste de preto, nem...
- Calma lá – interrompeu-me ela – eu não apareci pra você, não sou um ser, mas sim uma presença, como já disse. E não apareci pra você porque eu vivo em você.
“Assim como em todos os seres viventes neste plano da dualidade. Eu vivo integralmente em suas vidas, já a morte é plena na vida e a vida é plena na morte. Mas é justamente isso que vocês relutam em aceitar.
Opostos, contradições, Yin e Yang. Não haveria equilíbrio ou harmonia se, assim como a vida, a morte não fosse uma presença constante e parte integrante de cada um de vocês.
Porém, o tabu ao meu redor é tão forte que vocês me personificaram. E com que mal gosto, hein?!”
- Mas eu não tenho um diálogo como este com a vida! – repliquei.
- Talvez não como este, mas você conversa com a vida o tempo inteiro e isso lhe é tão comum que você nem nota. E, da mesma forma que conversa com ela, deveria conversar comigo, pois juntas – vida e morte – somos UM consigo.
“Se agora você me vê aqui, é porque inconscientemente, sabe que sou parte de você e encontrou este jeito para me aceitar, para lidar comigo.
Agora que você já sabe que eu não tenho essa aparência, não me enxergará mais assim. Contudo, terá a todo momento, a convicção da minha inseparável companhia.”
Fez-se silêncio. Me perdi em reflexões e pensamentos confusos. Quando me dei conta já não via mais aquela criatura, mas sabia que a morte estava ali, assim como tenho certeza de que a vida está sempre aqui.
De repente tudo fez sentido: a natureza, os ciclos da vida, o tempo, tudo está em tudo... “e tudo acaba onde começou”.
“Morte, morte, morte que talvez, seja o segredo desta vida” (já dizia Raulzito).

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Gostei dos diferentes adjetivos que você deu à morte.
Desculpe a pergunta, mas e o vovô? No final não fica claro o que acontece com ele...

4:42 AM  

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